segunda-feira, junho 28, 2004
posted by Rita Alcaire
00:29
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Sobre Chico Buarque...
Correio da Manhã, 14/10/66
O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.
A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vem trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar.
A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais.
Meu partido está tomado. Não da ARENA nem do MDB, sou desse partido congregacional e superior às classificações de emergência, que encontra na banda o remédio, a angra, o roteiro, a solução. Ele não obedece a cálculos da conveniência momentânea, não admite cassações nem acomodações para evitá-las, e principalmente não é um partido, mas o desejo, a vontade de compreender pelo amor, e de amar pela compreensão.
Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda, há uma indicação clara para todos os que têm responsabilidade de mandar e os que são mandados, os que estão contando dinheiro e os que não o têm para contar e muito menos para gastar, os espertos e os zangados, os vingadores e os ressentidos, os ambiciosos e todos, mas todos os etcéteras que eu poderia alinhar aqui se dispusesse da página inteira. Coisas de amor são finezas que se oferecem a qualquer um que saiba cultivá-las, distribuí-las, começando por querer que elas floresçam. E não se limitam ao jardinzinho particular de afetos que cobre a área de nossa vida particular: abrange terreno infinito, nas relações humanas, no país como entidade social carente de amor, no universo-mundo onde a voz do Papa soa como uma trompa longínqua, chamando o velho fraco, a mocinha feia, o homem sério, o faroleiro... todos que viram a banda passar, e por uns minutos se sentiram melhores. E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente.
Carlos Drummond de Andrade
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posted by Rita Alcaire
00:17
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Francisco Buarque de Hollanda: 60 anos
Eu te amo
Ah, se já perdemos a noção da hora,
Se juntos já jogamos tudo fora,
Me conta agora como hei de partir?
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios,
Rompi com o mundo, queimei meus navios,
Me diz pra onde é que inda posso ir...
Se nós, nas travessuras das noites eternas,
Já confundimos tanto as nossas pernas,
Diz com que pernas eu devo seguir...
Se entornaste a nossa sorte pelo chão,
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu...
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu...
Como, se nos amamos feito dois pagãos,
Teus seios inda estão nas minhas mãos,
Me explica com que cara eu vou sair?
Não, acho que estás te fazendo de tonta,
Te dei meus olhos pra tomares conta,
Agora conta como hei de partir...
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sábado, junho 19, 2004
posted by Rita Alcaire
09:19
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O Tempo Não Pára
Disparo contra o sol,
Sou forte, sou por acaso
Minha metralhadora cheia de mágoas,
Eu sou um cara.
Cansado de correr
Na direção contrária,
Sem podium de chegada
Ou beijo de namorada,
Eu sou mais um cara.
Mas se você achar que eu estou derrotado,
Saiba que ainda estão rolando os dados,
Por que o tempo,
O tempo não pára.
Dias sim, dias não,
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
da caridade de quem me detesta.
A tua piscina está cheia de ratos,
Tuas idéias não correspondem aos fatos,
O tempo não pára.
Eu vejo o futuro repetir o passado,
Eu vejo um museu de grandes novidades,
O tempo não pára,
Não pára, não, não para!
Eu não tenho data pra comemorar,
Às vezes os meus dias são de par em par
Procurando agulhas no palheiro,
Nas noites de frio é melhor nem nascer,
Nas de calor se escolhe: é matar ou morrer.
E assim nos tornamos brasileiros.
Te chamam de ladrão de bicha maconheiro,
Transformam um país inteiro num puteiro,
Pois assim se ganha mais dinheiro.
A tua piscina esta cheia de ratos,
Tuas idéias não correspondem aos fatos,
O tempo não pára.
Eu vejo o futuro repetir o passado,
Eu vejo um museu de grandes novidades,
O tempo não para,
Não pára não, não para!
Cazuza
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